terça-feira, 5 de outubro de 2010

É Notícia: "Não é fácil aplicar o ECA, a demanda social em nosso País é grande"

O desembargador Francisco Gurgel Holanda é cearense de Acopiara, distante 345 km de Fortaleza. Graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1967, pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem Especialização em Direito Público pela Faculdade de Direito da UFC. Ingressou na magistratura em 1971, atuando como juiz substituto da Comarca de Ipueiras. Foi juiz titular das Comarcas de Guaraciaba do Norte, Pacatuba, Brejo Santo, Tauá e Caucaia. Respondeu, ainda, por Milagres e Parambu. Em 1982, foi promovido para a Comarca de Fortaleza, exercendo funções na 4ª Vara de Família e Sucessões (auxiliar), e na 9ª Vara de Família e na 1ª Vara da Infância e da Juventude (titular). No Fórum Clóvis Beviláqua implantou o “Juizado Itinerante”. Tomou posse como desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará em de abril de 2009, tendo presidido a 5ª Câmara Cível, instalada em fevereiro deste ano. A aposentou-se no último dia 6 de setembro. Francisco Gurgel Holanda continua à frente da Coordenadoria da Infância e da Juventude.

O Estado: Como surgiu a Coordenadoria da Infância e da Juventude (CIJ)?

Francisco Gurgel Holanda: A CIJ é uma recomendação, por resolução, do Conselho Nacional de Justiça [CNJ], para que os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal tenham em suas estruturas de administração uma coordenação para cuidar, especificamente, da área da infância e da juventude. O objetivo é fazer uma pesquisa para saber as necessidades, dar apoio incondicional aos juízes e servidores das varas da infância e da juventude na Capital e, no interior do Estado, àquelas unidades que atuam com esse tipo de ação. Aqui no Tribunal de Justiça do Ceará [TJCE] a Coordenadoria também trata das políticas públicas para a referida área. Enfim, é uma obra de grande significação para o Poder Judiciário e, principalmente, para a criança e o adolescente. É um órgão permanente, ligado à presidência dessa corte.

O Estado: A CIJ está fazendo audiências concentradas nas unidades de acolhimento. Quais os objetivos?

FGH: É mais uma demonstração do compromisso do Poder Judiciário com a criança e o adolescente. Isso porque as audiências concentradas já se realizam em todo o País. Elas têm o prazo de 90 dias para ser concluídas, com um relatório final. É o documento necessário que o CNJ aguarda para juntar informações do Brasil inteiro sobre particularidades de crianças e adolescentes que se encontram em acolhimento institucional e familiar. Aqui no Ceará, não temos acolhimento familiar, somente o institucional. O CNJ quer diagnosticar por que a criança está acolhida, há quanto tempo, como vão as providências do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública sobre essas crianças e esses adolescentes em acolhimento para, então, fazer um estudo e descobrir, a partir dessa análise, as providências que devem ser feitas. É bom lembrar que não estamos falando de crianças e adolescentes que cometeram ato infracional. São crianças e adolescentes que estão afastados do grupo familiar natural ou ampliado por alguma circunstância, não significa decididamente que estão em processo de ou caminhando para adoção.

O Estado: Quantas unidades serão visitadas no Ceará?

FGH: Serão 26 em Fortaleza e 23 no interior, espalhados por 18 municípios. Procuramos saber quais entidades, entre estatais e organizações não governamentais (ONGs), estão funcionando. Além disso, entramos em contato com os juízes para buscar o número exato.

O Estado: O que já foi diagnosticado?

FGH: O CNJ pediu três relatórios, um para cada mês de trabalho. [O primeiro já foi encaminhado]. Há algumas deficiências, perdoáveis. Não existe nenhuma falha grave. Temos percebido uma dedicação exemplar dos encarregados em dar apoio aos acolhidos. Os focos de imperfeições que descobrimos, estamos comunicando ao CNJ no primeiro relatório mensal. A nossa obrigação de imediato, nas audiências, é tomar medidas, tais como: se é de competência do Conselho Tutelar, do Ministério Público, da Prefeitura ou do Estado, que colaboram com o trabalho, resolver o problema. As providências estão sendo tomadas.

O Estado: A CIJ tem outro projeto em pauta?

FGH: Temos propostas da nossa coordenação no sentido de sempre avançar as políticas públicas, que é uma das nossas obrigações. Entre as ações está a realização do I Encontro de Juízes e Promotores de Justiça da Infância e da juventude do Estado, que deve ocorrer na primeira quinzena de novembro deste ano na Escola Superior da Magistratura do Ceará (Esmec).

O Estado: Existe relação entre a Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional do Ceará (Cejai/CE) e a CIJ?

FGH: Relação direta, não. Mas acredito que existe uma relação sistêmica. Caminhamos para uma mesma direção. A Cejai atua na jurisdição, ou seja, aprecia e julga, enquanto a Coordenadoria da Infância e da Juventude tem função administrativa para desenvolver experiências e buscar providências com políticas públicas a fim de produzir em prol do bom andamento da Justiça da infância e da juventude. Além disso, tem a atribuição de dar apoio a sociedade no interesse de resolver problemas sociais, como drogas e violência. Nosso trabalho é paralelo. Enquanto um aprecia e julga pedidos de adoção internacional, o outro órgão fica no campo administrativo.

O Estado: Que avaliação o senhor faz dos 20 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)?

FGH: O Estatuto é uma grande obra nacional. Não foi a toa que ele veio de documentos internacionais, trazendo princípios. Agora não é fácil de aplicar porque a demanda de necessidades sociais em um País como o nosso é grande. Além disso, às vezes, a má vontade dos governantes, da sociedade, do Poder Judiciário e de outros corresponsáveis compromete a efetividade do ECA. Vinte anos é pouco para que possamos dizer que já está tudo bem. É necessário sempre buscar o aprimoramento para atender essa área, que é complexa. Temos várias questões por trás ou no alicerce dessas faltas e carências. A família, por exemplo, tem função primordial. Os filhos são o reflexo do que o lar está passando.
Quando o lar se desestrutura, a família também se desestrutura, com raras exceções. É preciso que todos os Poderes e a sociedade se levantem e estejam ao lado do Estatuto para buscar as soluções de prevenção e proteção à criança e ao adolescente.

O Estado: Quais os direitos mais violados?

FGH: O que mais preocupa são as drogas. O direito de crescer longe deste mal está sendo violado. Essa infelicidade social gera violência e uma estatística aterrorizante de mortes diárias de nossas crianças e adolescentes. Em segundo lugar, que não está desligado disso [drogas], está a saúde, porque as drogas são uma questão de saúde pública. É necessário que os órgãos responsáveis assumam o compromisso de lutar pela causa infanto-juvenil. Todos, inclusive sociedade e Poder Judiciário. Não estamos aqui para defender nossos interesses, mas para assegurar direitos. É certo que aquilo que falta ao adulto está repercutindo na criança, que tem prioridade, mas não a recebe.

O Estado: Segundo o Ministério Público do Trabalho, o Ceará é o terceiro no ranking nacional em exploração do trabalho infantil. Como acabar com esse tipo de exploração?

FGH: Não é a nossa área de atuação. Para combater o trabalho infantil existem programas do governo e a atuação da Justiça do Trabalho, que estão se esforçando e, me parece, que tem melhorado. Além disso, o Ministério Público [MP] estadual tem dado sua contribuição até porque é dever do poder público, através do MP, erradicar o trabalho infantil. Há aqueles que dizem que a criança precisa desenvolver o interesse pelo trabalho. Tudo bem, mas na época oportuna. Não significa que quem não trabalha quando criança será um adulto preguiçoso. A criança tem de viver a sua infância, sem preocupações e com direito a estudar, brincar. O trabalho tem que ficar para o momento exato. Temos situações em que ou a criança trabalha para ajudar na economia familiar ou então todo mundo morre de fome, e aí fica difícil de explicar. No entanto, o correto é que a criança tenha o direito de ser criança.

O Estado: Como fazer, na prática, que o ECA seja mais efetivo?

FGH: Depende do compromisso de cada um dos responsáveis pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Em primeiro lugar, muito importante para a formação de qualquer pessoa, está a própria família, que é a base de tudo. Começa por aí. Em segundo lugar vem a sociedade. Nem pensar que seja o governo, quer municipal, estadual ou federal. Depois é que vêm os governantes, que somos nós. Temos que fazer cumprir os direitos fundamentais estabelecidos pela Constitucional Federal em favor da classe infanto-juvenil: saúde, educação, lazer e outros necessários. Não é só pensar e falar, mas executar. O Poder Judiciário tem avançado nas ações, como as audiências realizadas nas casas de acolhimento. Estamos vendo que o Poder Judiciário parece que acordou para isso e está fazendo que com nós acordemos para a realidade que, no meu entender, vinha sendo desprezada em razão de outras áreas. A infância e a juventude é bem mais importante do que qualquer outra área. Enquanto nas ações civis temos interesses políticos e econômicos, na infanto-juvenil estamos falando de personalidade, de caráter, de pessoa. Na troca, prefiro trabalhar pela alma e pelo espírito do que em um processo que cuida de interesse econômico, que pode ficar para amanhã. O que não pode ficar para depois é a saúde, a escola e os direitos fundamentais das pessoas, sobretudo de crianças e de adolescentes. Por isso a causa é bonita e o Poder Judiciário a está descobrindo.

O Estado: O senhor permanece à frente da CIJ?

FGH: Sim, quero estabelecer algumas metas já estudadas de algum tempo e fechar a implantação da Coordenadoria, entregando ao Tribunal de Justiça algo mais pronto, até porque a viagem começou agora.

O Estado: Como foi a atuação do juiz Francisco Gurgel Holanda?

FGH: Foi uma experiência que a princípio não gostei de ser indicado, mas, com o passar do tempo, fui descobrindo que trabalhar para a infância e a juventude, observando o que se tinha de fazer, o que se pôde fazer e o que se haveria de fazer, cada vez mais de calçou o espírito no sentido de gostar, de amar a pessoa que está a nossa frente e, principalmente, aqueles que estavam sob a minha obrigação. Foi um trabalho que me dignificou, procurei dignificar o trabalho, estudei muito a matéria para entender o assunto. Embora alguns digam que é muito fácil, não é bem assim. É preciso sensibilidade e preparo, que ninguém tem. Não é todo magistrado que pode ser juiz da infância e da juventude. Tanto assim que, tenho lido e concordo, deveria haver, não sei como ainda, uma qualificação toda especializada de juízes para essa área. É até lamentável quando, sem culpa do Tribunal de Justiça, há uma vaga para promoção e, às vezes, vem um juiz do Interior e diz ‘só tem vaga para a infância e juventude? Tudo bem eu assumo e depois vou para outra área’. São exemplos práticos, ainda não contornados. Teríamos que ter um meio para que os juízes dessa área tenham uma característica própria: devoção à causa.

Fonte: www.oestadoce.com.br

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