terça-feira, 23 de outubro de 2012


Sem notificação

O tortuoso caminho da denúncia que envolve crianças no Ceará

O Diário do Nordeste entrou em contato, por duas semanas, com os números de delação disponíveis
Muito mais do que o preconceito e a falta de estrutura para dar a retaguarda necessária na solução dos casos, a violação dos direitos das crianças passa pelo tortuoso caminho que começa no ato de denunciar até o recebimento da delação. Uma simples ligação deveria salvar vidas, mas nem sempre isso acontece. Os números de telefone criados para receber denúncias no Ceará não atuam com a eficácia que deveriam. O percurso até que se chegue à aplicação das medidas protetivas é longo. Muitas vezes, a população se depara com a burocracia e até com a falta de atendimento.

A população desiste de delatar casos contra a infância pela dificuldade Foto: natinho Rodrigues
O Diário do Nordeste fez o teste. Entramos em contato, por duas semanas, em horários diferentes, com o Disque 100 nacional; com o Fala Fortaleza, da Prefeitura; com o Disque Direitos Humanos (DDH), do governo do Estado; com a Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops); com os conselhos tutelares, inclusive o de plantão, e com os telefones do Ronda do Quarteirão.

A maior dificuldade foi contatar o Fala Fortaleza. Por duas semanas, o serviço estava indisponível porque os atendentes passavam por um curso de formação, segundo gravação. Somente na segunda-feira (15), o 0800 voltou a funcionar. Em alguns dos conselhos tutelares, em horário de expediente, os números de telefone disponíveis não atendem. Quando é possível falar, os funcionários encaminham para o Disque 100 ou para o Fala Fortaleza, além de informar que a denúncia só pode ser feita pessoalmente.

O plantão do Conselho Tutelar atende, mas pede para entrar em contato com o Disque 100. O Ronda do Quarteirão encaminha para os colegiados dos bairros, assim como a Ciops. Já o número nacional e o Disque Direitos Humanos estavam aptos a receber a denúncia no momento em que ligamos. Na avaliação da assessora jurídica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), Nadja Furtado, existem três números de denúncia no Estado que não se comunicam entre si e não há acompanhamento sistemático do recebimento e do encaminhamento da demanda. "Às vezes, a população fica confusa com tantos telefones, o que deveria ser bom, não fosse a dificuldade de notificar as delações", coloca.

Para ela, o caminho é demorado até chegar à aplicação da medida necessária. "O Disque 100 manda para o Conselho Tutelar, que envia para o Centro de Apoio da Infância e da Juventude e assim por diante", exemplifica. Assim, os colegiados dos bairros acabam priorizando os atendimentos pessoais, como acrescenta. "Não é um sistema que consiga dar uma resposta rápida para a população".

A assessora jurídica considera que deveria haver uma política de retaguarda para agilizar a resolução dos casos e ter mais conselhos tutelares para abarcar toda a demanda de Fortaleza. "Isso é bastante grave. Precisamos de esforços concentrados para resolver a situação das denúncias que sequer conseguem chegar aos órgãos competentes", pontua. Ela afirma que não há controle externo dos telefones que recebem as delações.

Com tantos percalços, a população acaba desistindo de denunciar. Mas Nadja lembra que, apesar das dificuldades, é importante que as pessoas insistam e cobrem dos órgãos a resposta para o problema. "Qualquer autoridade policial pode atuar nos casos contra crianças, quando se tratar de algo emergencial".

Para Aurilene Vidal, membro da coordenação colegiada do Fórum Permanente das ONGs de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA), as situações que envolvem a infância são muito complexas e não há um aparato estatal para atender todas as denúncias. "A criança fica fragilizada em situação de risco. O tempo que leva até que uma medida seja aplicada pode custar a vida de um menino ou menina", alerta. Ela informa que o conselho tutelar, porta de entrada para todos os casos, é alvo de muita descredibilidade por parte da população. "É uma rede que precisa ser fortalecida e priorizada enquanto política", avalia.

Direitos humanos
O secretário municipal de Direitos Humanos, Demitri Cruz, revela que Fortaleza é a única capital com um Disque Direitos Humanos. Ele explica que o Fala Fortaleza passou por uma reformulação, por isso, ficou desativado por mais de uma semana. "A gente se preocupa em disponibilizar um canal direto para a população", avisa.

Segundo Cruz, o Disque Direitos Humanos é a porta de entrada para que as pessoas façam denúncias rápidas e que a integração com a rede consegue mobilizar os órgãos para que as demandas sejam atendidas. Ele complementa que a secretaria tem estabelecido um diálogo com os conselheiros tutelares a fim de melhorar a dinâmica da aplicação das medidas.

A resolução dos casos que envolvem crianças se concentra nos conselhos tutelares. O governo do Estado, por meio do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), funciona como retaguarda, acompanhando e inserindo meninos em projetos sociais.

Violações têm demanda represada
Parte da demanda proveniente de denúncias que dizem respeito à violação dos direitos das crianças fica represada em Fortaleza. É o que assegura a promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional à Infância e Juventude (CAOPIJ), Antônia Lima. Além disso, o grande desafio é o retorno dos conselhos tutelares sobre quantas denúncias foram atendidas, quantas foram encaminhadas e quantas ficaram sem aplicação de medidas protetivas. Das 2.453 delações recebidas no Ceará, sendo 1.469 na Capital, pelo Ministério Público Estadual (MPE), não é possível saber quantas foram solucionadas, justamente pela falta de feedback.

Crianças ficam à mercê da falta de retaguarda dos órgãos responsáveis pela aplicação das medidas protetivas. Casos de omissão dos conselheiros tutelares de prosseguirem com o encaminhamento da denúncia são detectados FOTO: ALEX COSTA

Para tentar solucionar os casos que estão em atraso, a promotora informa que está sendo programado um mutirão. Ela destaca que os canais de recebimento de denúncias são muitos, resultando em um número muito elevado de crimes contra a criança que chega aos órgãos responsáveis. "Além dos telefones disponibilizados pela Prefeitura de Fortaleza, governo do Estado e União, a gente do Ministério Público também recebe delações, fora os hospitais, a delegacia especializada e as espontâneas", lista. Conforme Antônia Lima, não falta estrutura para acolher as denúncias, mas a dificuldade é atendê-las.

A promotora aponta a escassez de conselhos tutelares como um dos problemas. Segundo resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Fortaleza tem de ter um para a cada 100 mil habitantes. Existe um déficit de 20 colegiados. Para ela, os conselhos não estão conseguindo dar a resposta necessária.

Além disso, os colegiados ainda não começaram a usar o Sistema de Informação para Infância e Adolescência (Sipia), mecanismo fundamental para o levantamento de dados. A falta de um banco que arquive números de atendimentos e de encaminhamentos nos conselhos tutelares é outro problema. "Precisamos de dados sobre o tipo de violência que é praticada, as medidas que são propostas e se foram cumpridas", descreve.

Existem também casos de omissão dos conselheiros tutelares de prosseguirem com o encaminhamento da denúncia, como aponta a presidente do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Fortaleza (Comdica), Núbia Pena Batista Arruda.

Para apurar os casos, foi instalada uma Comissão Disciplinar, por meio de lei municipal. "Fizemos agora a supervisão e o regimento interno dos colegiados", narra. Núbia revela que, pela primeira vez, foi realizada uma capacitação para os conselheiros tutelares.

Trabalho
De acordo com o secretário municipal de Direitos Humanos, Demitri Cruz, está sendo feito, desde o começo do ano, um trabalho de melhoria com os conselhos tutelares. "Temos limitações porque não nos compete disciplinar esses órgãos, mas instituímos o plantão para atender os casos dos fins de semana, estruturamos os locais e estamos dando condições para que os conselhos adotem o Sipia".

A presidente do Comdica informa, ainda, que estão sendo criados mais dois colegiados em Fortaleza até o fim deste ano.

Como revela Demitri Cruz, acontecem casos de enganos no encaminhamento das crianças para a aplicação das medidas protetivas, como, por exemplo, um conselheiro que não envia um caso de drogadição para ser tratado no Centro de Atenção Psicossocial (Caps). "Lidamos com algumas dificuldades de abordagens, mas temos investido no diálogo para otimizar o atendimento", conclui.

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