segunda-feira, 28 de junho de 2010


Artigo Especial: Conselho Tutelar e o adolescente em conflito com a lei

Matéria interessante, que vem sendo objeto de certa controvérsia – a meu ver de forma totalmente despropositada, diz respeito à atuação do Conselho Tutelar em relação aos adolescentes em conflito com a lei, assim entendidos aqueles acusados da prática de condutas descritas pela lei penal como crime ou contravenção.

Temos conhecimento de situações extremas, que vão da atuação sistemática, desde o momento da apreensão (inclusive com o acompanhamento da lavratura do boletim de ocorrência circunstanciado ou auto de apreensão), até a recusa pura e simples em lidar com o jovem salvo na hipótese de assim o determinar a autoridade judiciária, na forma do disposto no art.136, inciso VI da Lei nº 8.069/90.

Bem, em primeiro lugar devemos considerar que, de fato, a única disposição expressa do Estatuto da Criança e do Adolescente referente à intervenção do Conselho Tutelar em relação ao adolescente em conflito com a lei, se encontra em seu citado art.136, inciso VI, que estabelece, dentre as atribuições do Órgão Tutelar, a de “providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as previstas no art.101, de I a VI, para o adolescente autor de ato infracional” (verbis).

Salta aos olhos, no entanto (data venia os que pensam o contrário), que a atuação do Conselho Tutelar junto a esses jovens não pode ocorrer apenas em tal hipótese, o que acabaria por desvirtuar as próprias características e atribuições do Órgão Tutelar. Com efeito, se por um lado é certo que o Conselho Tutelar não pode nem deve substituir o papel da polícia judiciária, Ministério Público e/ou Juiz da Infância e Juventude no que concerne à apuração do ato infracional[2], por outro também não pode depender do destino do procedimento instaurado para que possa agir.

Devemos lembrar que, por expressa definição do art.131 da Lei nº 8.069/90, o Conselho Tutelar é órgão autônomo, que tem atribuições específicas relacionadas à defesa dos direitos da criança e do adolescente que estejam de qualquer modo ameaçados ou tenham sido violados nas hipóteses relacionadas no art.98 do citado Diploma Legal (conforme art.136, inciso I também do Estatuto da Criança e do Adolescente). Nesse contexto, a intervenção do Conselho Tutelar junto ao adolescente em conflito com a lei obviamente não pode ficar condicionada ao encaminhamento do caso pela autoridade judiciária, ao final de um procedimento cujo destino é incerto e cuja tramitação pode ser extremamente morosa.

A atuação do Conselho Tutelar em tais casos deve ocorrer de forma absolutamente autônoma, independentemente da apuração dos fatos atribuídos ao jovem e da sorte do procedimento, ficando, é claro, condicionada não à eventual comprovação da autoria e materialidade do ato infracional (tarefa que evidentemente não cabe ao Órgão Tutelar), mas sim à aferição da presença de situação de risco pessoal ou social, ex vi do disposto no art.98 da Lei nº 8.069/90.
E este é o ponto fundamental.

Ao estabelecer ao Conselho Tutelar a atribuição de atender crianças e adolescentes que se encontram em situação de risco pessoal ou social, a Lei nº 8.069/90 não excepcionou o atendimento de adolescentes acusados da prática de ato infracional, sendo certo que a presença da situação de risco pode ser determinada em razão da conduta do adolescente, ex vi do disposto no art.98, inciso III da Lei nº 8.069/90.

Note-se não estamos afirmando que todo adolescente autor de ato infracional, apenas por esta singela razão, se encontra em situação de risco, mas é lógico que a conduta infracional, notadamente em razão da eventual gravidade do ato praticado ou reiteração de infrações mesmo de natureza leve, deve ser considerada ao menos indiciária de que algo está errado com o jovem e/ou sua família, e como a sistemática estabelecida pelo Estatuto prima pela prevenção, com a intervenção protetiva da autoridade competente ante a simples ameaça de violação de direitos, ao menos deve ser a situação pessoal, familiar e social do jovem apurada e avaliada, e uma vez constatada a efetiva presença da situação de risco no caso em concreto, deverá o Conselho Tutelar intervir natural e obrigatoriamente, no estrito cumprimento da citada atribuição prevista no art.136, inciso I da Lei nº 8.069/90. Como dito acima, tendo em vista a autonomia do Órgão Tutelar, sua intervenção, se necessária, obviamente deverá ocorrer paralelamente ao procedimento judicial eventualmente instaurado para apurar o ato infracional, independentemente de provocação ou autorização da autoridade judiciária competente (embora seja recomendável comunicá-la das providências tomadas e dos eventuais êxitos atingidos, que poderão influenciar na aplicação de medidas sócio-educativas e mesmo protetivas ao jovem).

Uma vez que concluímos pela possibilidade, e em alguns casos até mesmo necessidade da intervenção do Conselho Tutelar em relação ao adolescente em conflito com a lei que, por qualquer razão, se encontra em situação de risco na forma do disposto no art.98 da Lei nº 8.069/90, resta tecer comentários acerca algumas situações que vêm acontecendo e que merecem ser objeto de melhor reflexão.
Uma delas diz respeito à exigência, normalmente efetuada pelo Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, de que membros do Conselho Tutelar acompanhem, de forma sistemática, a lavratura pela autoridade policial do auto de apreensão ou boletim de ocorrência circunstanciado de adolescentes apreendidos em flagrante de ato infracional. Vale registrar que compreendemos o objetivo da medida acima referida, que vem a ser o de garantir a integridade moral e mesmo física do adolescente, protegendo-o contra potenciais abusos cometidos pelos agentes policiais.

Ocorre que, em primeiro lugar, pela própria sistemática do Estatuto da Criança e do Adolescente, deve-se primar para que o adolescente, quando da formalização do ato de sua apreensão e ao longo de todo o procedimento sócio-educativo, seja assistido por seus pais ou responsável ou, ao menos, como diz o art.107, caput da Lei nº 8.069/90, por pessoa por ele indicada.

Note-se que o dispositivo supra, ao estabelecer que a apreensão do adolescente e o local em que se encontra recolhido serão comunicados incontinenti[3] à sua família ou à pessoa por ele indicada, quis fosse tal contato realizado de forma instantânea, sem qualquer demora, automática à apresentação do jovem perante a autoridade policial, tendo a medida o claro objetivo de permitir a seus pais, responsável ou pessoa por ele indicada, o acompanhamento de sua oitiva perante a autoridade policiais e demais formalidades relacionadas à apreensão.

Como dentre aqueles que devem ser obrigatoriamente comunicados da apreensão do adolescente[4], o legislador deixou de incluir o Conselho Tutelar, é lógico concluir não há porque, de forma sistemática, seja ele acionado sempre que ocorrer tal apreensão, ficando é claro assegurado ao adolescente apreendido o direito de, se assim o desejar, optar pela comunicação ao Conselho Tutelar ou a algum de seus membros com o qual o mesmo, pelas mais diversas razões, mantém alguma espécie de vínculo.

Coisa alguma impede, porém, que o próprio Conselho Tutelar, na perspectiva de garantir a já mencionada integridade moral, psíquica e física de adolescentes apreendidos, mediante deliberação de sua plenária e prévio acordo com a autoridade policial competente, por iniciativa própria resolva realizar o referido acompanhamento sistemático, que em tal caso, por óbvio, não irá desobrigar a autoridade de, quando da apreensão, comunicar além do Órgão Tutelar, os pais, responsável ou pessoa indicada pelo apreendido.

O que não se admite é que semelhante prática seja de qualquer modo imposta por pessoa, órgão ou autoridade estranha ao Conselho Tutelar, embora possam estes, em sentindo a necessidade, tentar junto ao Órgão Tutelar a concordância com a implantação de tal sistemática, haja vista que os mesmos resultados por ela pretendidos poderiam ser perfeitamente obtidos por outros meios, notadamente através da criação, pelo município, de um programa específico de atendimento psicossocial a adolescentes apreendidos em flagrante de ato infracional, que ficaria encarregado de acompanhar (mais uma vez sem prejuízo da presença dos pais, responsável ou pessoa indicada pelo jovem), todo o trâmite policial do procedimento, inclusive com a condução do jovem até sua residência, se necessário.
Por Murillo José Digiacomo
Promotor de Justiça no Estado do Paraná

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